CANAL LITERÁRIO

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segunda-feira, 16 de junho de 2014

ÁLBUM



Ninguém na família nunca morreu de amor.
O que passou, passou, mas nada que alimente um mito.
Romeus tísicos? Julietas diftéricas?
Alguns até atingiram uma idade senil.
Nenhuma vítima de falta de resposta
a uma carta manchada de lágrimas!
Ao fim e ao cabo sempre aparecia algum vizinho
de pincenê carregando um buquê.
Nunca ninguém sufocou num armário estiloso
porque o marido da amante voltou de repente!
Nenhuma mantilha, babado ou fita
nunca impediu ninguém de aparecer na foto.
E nunca na alma um Bosch infernal!
E nunca com uma pistola pelo quintal!
(Faleceram de bala na cabeça, mas por outros motivos
e em macas de campanhas)
Mesmo essa de coque extático
e olheiras fundas como depois de uma folia
se foi em meio a uma grande hemorragia
mas não para ti, dançarino, e não com pena.
Talvez alguém muito antes do daguerreótipo -
mas desses no álbum, nenhum, que eu tenha sabido.
As tristezas se desfaziam em risos, corriam os dias
e eles consolados sumiam-se de gripe.

Wislawa Szymborska

Análise Comparativa de "Emma Zunz" e "O Barril de Amontillado"

1.    Análise comparativa entre os contos: Emma Zunz, de Jorge Luis Borges e O Barril de Amontillado, de E.A.Poe, à luz dos seguintes aspectos:

a.   Estrutura: aponte para semelhanças e diferenças na estrutura do conto – narrador, tempo da narração, espaço, personagens, linguagem;

No conto O Barril de Amontillado, de Edgar Allan Poe, a narração acontece em 1ª pessoa, portanto, o narrador é personagem. Em Emma Zunz, de Jorge Luis Borges, a narração se dá em 3ª pessoa por meio de um discurso indireto. O narrador, por sua vez, é observador.
O tempo em O Barril de Amontillado é marcado como em “uma tarde, quase ao anoitecer, em plena loucura do carnaval”; enquanto que em Emma Zunz a história se passa no dia 14 de janeiro de 1922. Já o espaço no texto de Poe é a adega na casa do personagem Montresor. Na narrativa de Borges, a história se passa na fábrica de tecidos na qual a personagem Emma trabalha.
Em O Barril do Amontillado, os personagens são Fortunato, Montresor e Luchesi. Embora Luchesi não participe efetivamente da trama, são dadas a ele características que o definem como um homem “incapaz de distinguir entre um Amontillado e um Xerez”. Em Emma Zunz, os personagens são Emma Zunz, Fein ou Fain, Manuel Maier, “que nos velhos dias felizes fora Emanuel Zunz”, Aaron Loewenthal, Elsa Urstein e Perla Kronfuss.
Em se tratando da linguagem, ambos os contos apresentam uma narrativa curta em que não há um profundo desenvolvimento dos aspectos psicológicos dos personagens. O Barril de Amontillado e Emma Zunz corroboram as idiossincrasias do gênero conto porque contam os fatos, envolvem o leitor e vão direto ao ponto, sem rodeios.
Segundo Todorov, o princípio gerador da ficção de Poe seria o “superlativismo”, ou seja, a tendência à exploração sistemática dos limites, dos extremos, dos excessos.

No nível estilístico, este princípio estaria evidenciado na abundante presença de superlativos, hipérboles e antíteses. No que concerne aos temas e ideias, a problematização de pares como loucura-razão, humano-animal, natural-sobrenatural, e, sobretudo, vida-morte também seria uma derivação do superlativismo. (Pigmalião às avessas: um conto de Allan Poe. Andrey Pereira de Oliveira-UFCG)

No conto de Poe, há um clima de suspense que surpreende e aproxima o leitor da trama, justamente, porque o texto é escrito em 1ª pessoa. Tal peculiaridade torna o conto muito mais real e auxilia no desenrolar da história. Em Emma Zunz, o suspense começa na ocasião em que a protagonista liga para a vítima da vingança dizendo ter informações sobre a greve dos funcionários da fábrica. E a partir de então, ela age conforme os seus planos que ainda são desconhecidos pelo leitor, uma vez que num primeiro momento não há pistas. Em contrapartida, Edgar Allan Poe conduz o leitor a perceber os sinais dessa vingança. Montresor, por exemplo, encaminha a vítima para a adega e oferece-lhe mais vinho.
Em O Barril do Amontillado, existe a ideia de que o protagonista conta a história de vingança para alguém como se houvesse a necessidade de confessar suas ações impiedosas. Isso é reforçado pela escolha, mais uma vez, da narrativa em 1ª pessoa. Em Emma Zunz, por sua vez, a ausência de um confessor é endossada pela escolha da narração em 3ª pessoa. Observa-se ainda que o conto Emma Zunz não apresenta marcas de um possível arrependimento ou sentimento de culpa da personagem.

b.   Tema: vingança;

Em O Barril do Amontillado, o personagem Montresor revela-se injuriado e insultado pela vítima. Em um primeiro momento, possivelmente a um confessor, Montresor questiona a natureza do seu caráter e supõe que não houvera proferido qualquer ameaça à vítima. E ele reforça: “No fim, eu seria vingado.” Nessa passagem do conto, portanto, há uma semântica discursiva porque existe uma relação de duplo sentido.
Nota-se que em O Barril do Amontillado a vingança se deu também por causa da falta de pagamento de uma dívida. “(...) e seria tolo que o pagasse como sendo de Amontillado antes de consultá-lo sobre o assunto. (...) e preciso efetuar o pagamento”. Até então, o leitor não sabe que Montresor não tem intenção de pagar Fortunato, nem com Amontillado nem com dinheiro, devido à sequência dos fatos.
Por meio de uma linguagem figurada, Poe usa o núcleo do título do conto – a palavra barril – para representar o desfecho da história. O barril representa o engodo para que Fortunato, a vítima, fique tentado com a possibilidade de ter um barril de Amontillado, como forma de pagamento, agindo exatamente conforme os planos de Montresor.
Em Emma Zunz, a notícia do suicídio do pai desencadeia o estopim para a vingança. A personagem se aproveita de uma situação na qual a fábrica está em greve para manipular a vítima e cometer seu ato atroz de vingar-se. Emma simula a cena do crime também, já que a cena da morte acontece quando a personagem desabotoa o paletó da vítima e tira seus óculos. Existe, logo, aquilo que o Direito chama de cogitação e atos preparatórios.   

c.    Símbolos e metáforas;

Em O Barril do Amontillado, o brasão da família é um símbolo que representa a compreensão do conto. Nesse brasão, há um enorme pé com uma serpente rampante cujas presas estão ferradas no calcanhar. A legenda Nemo me impune lacessit (Ninguém me fere impunemente) é a representação do significado desse brasão porque, ao mesmo tempo em que o pé esmaga a serpente, o veneno da cobra entranha pelo corpo e mata.
O barril, como já fora dito, representa o desfecho do conto. Observa-se também que na palavra barril em inglês, caso seja retirada a letra C, forma-se o vocábulo ask, que quer dizer pergunta. Há a sugestão de que a resposta para o conto está dentro do próprio barril.
De acordo com o site Wikipédia, a trolha – também conhecida como colher de pedreiro – é o símbolo da benevolência para com todos na maçonaria. A trolha pode ser considerada como um emblema de tolerância e de indulgência com que todo maçom deve dissimular as faltas e defeitos de seus irmãos. A trolha, segundo Plantagenet, é o símbolo do amor fraternal que deve unir a todos os maçons, único cimento que os obreiros podem empregar para a edificação do templo. Há ainda o sentido da expressão passar a trolha que significa esquecer as injúrias ou as injustiças, perdoar um agravo, dissimular um ressentimento, desculpar uma falta.
Em Emma Zunz, há a carta que desencadeia o processo de vingança. Existe ainda o revólver que é um símbolo o qual remete à contemporaneidade do conto, dialogando com o símbolo da colher de pedreiro do conto de Poe. Nota-se, portanto, que Jorge Luis Borges é um leitor de Edgar Allan Poe e constrói um texto que é a própria leitura do autor norte-americano.

d.   Efeito no leitor: Borges consegue traduzir em Emma Zunz o mesmo efeito que em O Barril de Amontillado?

Há o mesmo efeito produzido por Poe porque ambos os contos partem do enigma e não do conto policial. Apesar de o tema ser vingança, não há a ideia de uma vingança qualquer porque o ato de vingar-se deve ser perfeito e impune. Nem Fortunato nem Loewenthal souberam o motivo pelo qual foram mortos. Assim, pode-se concluir que a vingança não se realizou perfeitamente como era pretendida pelos vingadores. Percebe-se que Montresor segue de forma fiel a estrutura do ato nefando porque ignora a condição de sujeito da vítima, restringindo-o à condição de objeto.

e.   Considerações finais.

Em ambos os contos, os autores prendem a atenção do leitor. A linguagem é curta e simples. Apesar de não existir uma descrição detalhada das características psicológicas dos personagens, Emma e Montresor são vistos como dissimulados porque se certificam de que cada vítima receba exatamente aquilo que merece. A teoria da atribuição de Melvin Lerner diz que as pessoas sentem-se mais confortáveis quando pensam que podem controlar as próprias vidas.

Precisamos acreditar que vivemos em um mundo em que as boas ações são recompensadas e as más, punidas, e isso contribui de maneira significativa para nossa sensação de que é possível prever, conduzir e, em última análise, controlar os acontecimentos. Essa “hipótese de um mundo justo” é uma tendência a acreditar que “as pessoas recebem o que merecem.” (O LIVRO DA PSICOLOGIA. Ed. Globo, 2012. p. 242)


Análise Semântica da música "Pedaço de mim", de Chico Buarque

Análise Semântica da música “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque.

Música integrante da trilha sonora da peça musical "Ópera do Malandro" grande sucesso de Chico Buarque dos anos 70, lançada em LP em1979.
Francisco Buarque de Hollanda nasceu no Rio de Janeiro em 1944, mas viveu sua infância, adolescência e juventude em São Paulo. Filho do historiador Sérgio Buarque de Hollanda, Chico Buarque pode ter acesso a nata do pensamento intelectual e cultural devido as visitas que seu pai recebia em casa, influenciando assim, seu pensamento crítico e a habilidade comunicativa. Chico também estudou no Colégio Santa Cruz de São Paulo, com forte influência para estudos sociais, assim como cursou a FAU Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, na época forte reduto de estudiosos voltados para os problemas sociais do Brasil.
Na década de 70 as músicas de Chico passaram a ter cunho mais fortemente social, como "Apesar de você", "Cálice", "Bolsa de amores", "Tanto mar" todas censuradas pelo governo militar da época.
"Apesar de você" foi lançada em compacto chegando a vender 100 mil cópias, mas teve seus discos restantes apreendidos pela censura: era uma clara alusão ao governo militar que "apesar dele" o país continuaria a seguir seu destino; em 1973, no evento Phono 73 reunindo todo o elenco da gravadora Phonogram no Palácio das Convenções do Anhembi (SP), Chico ao apresentar com Gilberto Gil sua música "Cálice" teve o microfone desligado, o que causou grande tumulto. Com "Opera do Malandro" Chico atingiu maturidade total como escritor e compositor ao fazer este musical de grande sucesso, com canções belíssimas inclusive esta "Pedaço de mim".
Chico compôs mais de duzentas músicas e com diversos parceiros sendo considerado um dos mais eruditos, profícuos e importantes compositores da MPB.
Participou de inúmeros espetáculos teatrais, filmes e mais recentemente dedica-se à literatura tendo escrito várias obras de sucesso.
 

PEDAÇO DE MIM                                                                                   ( Compositor: Chico Buarque )

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus.
                                                                                           
Análise                                             
O tipo de texto utilizado para esta análise é a música “Pedaço de Mim”, de Chico Buarque de Holanda. Pode-se observar que a lexia que mais aparece no texto é a palavra “saudade”, sendo repetida seis vezes no decorrer da melodia.
Observa-se que no sentido denotativo, o verbete “saudade” é a recordação suave e melancólica de pessoa ausente, local ou coisa distante, que se deseja voltar a ver ou possuir. Nostalgia., segundo o dicionário Houaiss.
No sentido conotativo, a palavra “saudade” pode ser exemplificada pelo próprio título “Pedaço de mim”, é como se a saudade corrompesse o Eu-lírico a ponto de tirar um pedaço dele. A saudade como denotação é a recordação de alguém que se espera ver novamente, metaforizada, ela passa a ser um castigo para quem espera ver alguém que se tem saudade e, esse sentimento de espera e dor, o autor metaforiza como algo que ele não quer carregar, o castigo de viver na falta de alguém personificado na mortalha do amor, de alguém que já partiu, reforçando a ideia na palavra “adeus” que encerra a última estrofe da canção.
Pode-se observar também que a palavra saudade é comparada a um barco “que a saudade dói como um barco/Que aos poucos descreve um arco”, temos uma oração coordenada sindética explicativa e o elemento explícito “como “para provar essa comparação. Na mesma estrofe o pronome relativo “que”, retoma o substantivo “barco” e nesse verso da música há uma prosopopeia porque o barco está assumindo a ação de descrever que é inerente aos humanos.
 A estrutura da construção sintática da música é marcada pelo chamamento, ou seja, através da figura de linguagem (apóstrofo) “Oh, pedaço de mim”, dá sentido de invocação, formada por frases nominais, ou seja, tem o sentido completo mas com a ausência do verbo.
Logo em seguida, aparece uma oração assindética “Leva o teu olhar”, seguida por orações coordenadas sindéticas explicativas no decorrer de toda a música.
Exemplo: Oh, pedaço de mim (A) Frase nominal
                  Oh, metade afastada de mim (A) invocação, chamamento
                  Leva o teu olhar (B) Assindética
                  Que a saudade é o pior tormento (C) oração coordenada sindética explicativa
                  É pior do que o esquecimento (C)
                  É pior do que se entrevar (B)

Na terceira estrofe da canção há uma metáfora “A saudade é arrumar o quarto/ Do filho que já morreu”, ou seja, a transformação da palavra saudade como um ser humano/material, capaz de desenvolver a função que é inerente ao ser humano em arrumar o quarto, evidenciando assim a prosopopeia. A saudade por si só não arruma o quarto, ela passa a arrumar através da linguagem metaforizada, por meio da linguagem poética.
Por meio da linguagem poética esse “pedaço de mim” vai representar toda a carga que é a dor da saudade. O corpo vai sentir o que a saudade é exatamente, ou seja, uma fisgada que dói e lateja, a amputação de um membro do corpo, um pedaço que se perde. "Oh, metade arrancada de mim... Leva o vulto teu/Que a saudade é o revés de um parto/ a saudade é arrumar o quarto/do filho que já morreu”, essa é sem dúvida a metáfora mais bonita da canção, “a saudade é o revés de um parto, ou seja, a presença de uma ausência, lugar onde o amor se aninhou reforçado na palavra “quarto” que tem sentido conotativo de “útero” sugerido anteriormente na estrofe pela palavra “parto”.
Observa-se também na 5º estrofe um corte, uma quebra de ritmo introduzida pela oração “A mortalha do amor”. Há uma ruptura na rima, na musicalidade seguida pela palavra adeus no último verso. Uma despedida.

Conclusão
Percebe-se através das composições de Chico Buarque uma forte erudição quanto a escolha das palavras, a riqueza das construções sintáticas, a linguagem metaforizada.
Torna-se inclusive, extremamente complexo analisar a obra desse que é um dos melhores representantes da nossa música popular brasileira.

Compositor hábil, singular e extraordinário, Chico nos desafia o olhar. Nos remete a sentir e perceber o mundo e as formas por outro prisma, outras veredas.

Análise do Capítulo das Negativas, de Brás Cubas

Memórias Póstumas de Brás Cubas
Capítulo CLX (160)
DAS NEGATIVAS
Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.
Este último capítulo é todo de negativas. Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento. Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.
_____________________________________________________________________________
Nas primeiras linhas do capítulo, o narrador reforça a ideia negativa ao citar o personagem Quincas Borba, que também fracassou na vida;
Refere-se ao emplasto (medicamento) de forma negativa e usa ideias quase que incertas, reforçadas pelas formas verbais “darias” e “eras”;
Afirma que “o acaso da vida determinou o contrário”, ou seja, o emplasto não deu a Brás Cubas o primeiro lugar entre os homens;
“Entre a morte do Quincas Borba e a minha, mediaram os sucessos narrados na primeira parte do livro. O principal deles foi a invenção do emplasto Brás Cubas, que morreu comigo, por causa da moléstia que apanhei. Divino emplasto, tu me darias o primeiro lugar entre os homens, acima da ciência e da riqueza, porque eras a genuína e direta inspiração do céu. O acaso determinou o contrário; e aí vos ficais eternamente hipocondríacos.”
Em seguida, o discurso apresenta uma antítese (ideia contrária), porque o narrador emprega a frase declarativa afirmativa “Este último capítulo é todo de negativas”, e usa uma sequência de quatro frases declarativas negativas;
“Não alcancei a celebridade do emplasto, não fui ministro, não fui califa, não conheci o casamento.”
Apesar de tudo aquilo que não alcançou, não foi e não conheceu, o narrador ironiza o seu fracasso no momento em que revela uma ideia de sorte (boa fortuna) e rompe com a expectativa do leitor;
“Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba.”
O texto apresenta um sentimento de indiferença, porque o narrador diz que somado tudo isso e muito mais o leitor imaginará que não houve carência daquilo que é necessário (míngua), nem sobra;
Existe a ideia de que o personagem está quite com a vida. No entanto, mais uma vez, o narrador quebra a expectativa, dizendo que o leitor imaginará mal, porque “ao chegar a este outro lado do mistério” (além-túmulo) o narrador percebe que tem um saldo negativo com a vida;
“Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas:”
Esse saldo negativo com a vida é apresentado por meio de um discurso direto (observa-se o uso do travessão) do personagem;
O discurso traz o último suspiro do narrador, encerra toda a obra de forma irônica e representa a ideia de que Brás Cubas não continuou a espécie humana em uma sociedade miserável, podre, que pode ser a representação do verme da dedicatória;
O jogo de pessoas verbais – forma verbal “tive” (1ª pessoa do singular) e o pronome possessivo “nossa” (1ª pessoa do plural) – mostra que Brás Cubas não é qualquer pessoa, mas é a síntese de muitas pessoas, caracterizando-o como o reflexo da sociedade burguesa da época.
“— Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria.”

O Capítulo das Negativas: uma intertextualidade com o niilismo Nietzschiniano – a vontade de nada.
Podemos dizer que o século XIX e XX foi o século do filósofo Nietzsche. Suas ideias seguiram um caminho totalmente diferente dos outros filósofos universais, como Sócrates, Platão, Aristóteles.
Por conta dessa ruptura com o modelo de pensamento que demarcou a estrutura do nosso modelo de pensar até hoje, é que dizemos que o mundo está divido em duas partes: os que amam Nietzsche e os que negam.
Nietzsche afirma que o pensamento do homem universal foi determinado pelo querer, uma vontade de negação da vida, uma reação; ao valorizar o Ser e não o devir, ao avaliar como mal o que muda, o instável. Negamos a natureza, lutamos para vencê-la, especialmente a natureza humana, no que diz respeito ao domínio dos instintos e das paixões. A razão ocidental criou um homem que, sustentado por um modelo idealizado da vida, de mundo e de homem, luta contra si mesmo, e teme a si mesmo. Um homem dividido que precisa negar para poder afirmar, exatamente como faz Brás Cubas no último capítulo de suas memórias póstumas: O homem que nega para poder afirmar.

Nietzsche, Fragmentos Póstumos, verão de 1872.

Conclusão
O capítulo CLX apresenta uma síntese de toda a obra. Nada do que o personagem fez se realizou por completo;
Nota-se um certo arrependimento do personagem de ter se dedicado à vida profissional e deixado de lado as questões pessoais;
O capítulo é totalmente reforçado com os advérbios de negação, que aparecem nove vezes no texto;
Há antíteses e paradoxos que, justamente, apresentam ideias contrárias, opostas, reforçando a própria negação;
Os períodos são curtos e há predomínio das orações coordenadas;
Há uso da função metalinguística, porque o narrador refere-se ao capítulo no próprio capítulo;

Prática niilista do personagem de reduzir tudo ao nada.