CANAL LITERÁRIO

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terça-feira, 30 de abril de 2013

Domingo no Parque , Gilberto Gil.


Análise da música “DOMINGO NO PARQUE”  de Gilberto Gil.

  "Domingo no parque", à maneira das canções de Chico Buarque, é fundamentalmente uma canção narrativa, fazendo uso de um tempo verbal típico do gênero narrativo (ou épico), que é o pretérito: "trabalhava", "resolveu", "foi", entre outros. Os personagens são dois amigos: José, o rei da brincadeira, e João, o rei da confusão. O acontecimento trágico de que a letra dá notícia ocorrerá justamente num dia em que esses personagens contrariam, digamos assim, seus atributos: porque João escolhe a brincadeira, José se encaminha para a confusão, para a briga:
"A semana passada, no fim da semana,
João resolveu não brigar,
no domingo de tarde saiu apressado
e não foi pra ribeira jogar capoeira
não foi pra lá, pra ribeira, foi namorar".

Nesse trecho, aliás, notamos um recurso que vai ser usado em toda a letra: a anáfora, a repetição de palavras. Note que em "não foi pra lá, pra ribeira, foi namorar", o verbo "ir" aparece ora numa frase negativa, ora numa frase afirmativa, a qual é uma adversativa, com omissão do mas : "não foi pra lá (...),mas foi namorar". O nó da ação, ou seja, o seu ponto crítico, que vai precipitar o acontecimento trágico, é favorecido por esse desvio da rotina: João não vai brigar, (mas) vai namorar. E José? Corte na ação, agora o foco se concentra nele:
"O José como sempre no fim da semana
Guardou a barraca e sumiu
Foi fazer no domingo um passeio no parque
Lá perto da Boca do Rio
Foi no parque que ele avistou
Juliana
Foi que ele viu (...)'.
A reprodução do incidente se dá aos arrancos, por descontinuidades sintáticas e repetições: "Foi que ele avistou/ Juliana/ foi que ele viu Juliana na roda com João". É como se a descoberta de José ocorresse por partes: ele avista Juliana, mas ainda não  tudo. O verbo "ver" aqui ganha o sentido de abarcar o conjunto, a totalidade, por oposição ao "avistar", que indica olhar segmentado.
É preciso lembrar que não estamos diante de um poema, mas de uma canção, em que letra e música se articulam e que está sujeita a variações de improviso. 
  Conforme o arranjador ou o intérprete, algumas características podem ser enfatizadas. Assim, quando ouvimos Gilberto Gil cantar, primeiro temos "Ele viu", com o verbo "intransitivado"; depois temos "ele viu Juliana na roda com João", em que o verbo volta a ficar transitivo. Essa descontinuidade, essa interrupção da frase, expressa de alguma maneira a comoção de José diante do quadro funesto: o amigo com a sua amada. O choque dessa revelação se dá na linguagem também, que se torna impotente para dar conta de toda a carga dramática da situação. Os objetos, em si inocentes, que Juliana traz na mão, a rosa e o sorvete, vão crescer e adquirir estatuto de símbolo. Já não serão mais inocentes:

"O espinho da rosa feriu Zé
e o sorvete gelou seu coração".

Esses objetos, típicos de um alegre domingo no parque, ganham contornos de pesadelo. São metonímias, ou seja, são partes que valem pelo todo, são índices de algo maior. Lembra-se daqueles sonhos em que um objeto aparentemente simples parece indicar "algo mais" dada sua presença muito marcada e a insistência com que ele fica em nossa memória? Algo disso acontece aqui. Essa atmosfera onírica é intensificada com a repetição, a anáfora: "O sorvete e a rosa - ê José,
a rosa e o sorvete - ê José".

Temos aqui uma subespécie de anáfora: o quiasmo, a repetição cruzada (formando X) de palavras:

sorvete e rosa
rosa e sorvete.

Veja outra repetição:

"Oi, girando na mente - ô, José
Do José brincalhão - ô, José

Juliana girando - oi, girando
Oi, na roda gigante - oi, girando
Oi, na roda gigante - oi, girando
O amigo João - João".

Tudo gira literalmente, inclusive a cabeça de José, que vai deixando de ser brincalhão. Há uma relação de proporção aqui: quanto mais brinca João, quanto mais gira a roda-gigante, mais José vai se tornando sério e mesmo beligerante. A seriedade de um aumenta conforme a disposição jovial e brincalhona do outro. A repetição do verbo girar mais o uso do gerúndio produzem um efeito hipnotizante. A roda-gigante, rodando, põe a girar também a cabeça e as ideias de José.
A visão terrível desencadeia a luta, toda descrita por metonímias: a roda girando, a faca, o sangue, o sorvete de morango, vermelho, como a prenunciar o desastre que advirá.



Bibliografia: 
A Coesão Textual, Ingedore Villaça Koch.
Gramática, Faraco Moura e Maruxo.
Domingo no parque, de Gilberto Gil.