A
simbologia em A Hora da Estrela
No livro A Hora da Estrela, Clarice Lispector cria um narrador masculino
(Rodrigo S. M.) para levantar as dificuldades enfrentadas por Macabéa. A obra
apresenta um processo de metalinguagem entre autora e narrador, que fazem uma
série de mediações, para descrever o mundo de Macabéa. Clarice, por exemplo,
diz que mulher não pode falar de Macabéa porque correria o risco de lacrimejar
piegas. O objetivo da autora é evitar um sentimentalismo para que não
escorregue em uma história melodramática.
Macabéa é mulher, pobre e
nordestina. Do ponto de vista da semiologia, a personagem é a figura
paradigmática da literatura brasileira, porque faz parte de um longo processo
de emergência da figura do nordestino (Sertões, Euclides da Cunha; Vidas Secas,
Graciliano Ramos; Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto). São três
aproximações para aquele que fala pouco e tem parcas palavras.
O nome da personagem vem de Macabeus, que era o povo de origem
hebraica, zelotas bíblicos oprimidos pelos gregos (Olímpico). Apesar de ser
datilógrafa, Macabéa não é institucionalizada, ou seja, não sabe datilografar,
muito menos escrever. Ela é a demitida que ainda está, ligada por um vínculo
que não sabe qual é. Depois da sutil despedida, Macabéa vai ao banheiro para
ficar sozinha. Ela se olha em um espelho baço e escurecido que não refletia bem
sua imagem. O espelho sujo já remete a personagem a alguém que não tem uma
visão real de quem é. Macabéa ronda-se para tentar descobrir-se outra.
Olímpico de Jesus, por sua
vez, é um nordestino e namorado de Macabéa que adota o sobrenome Moreira porque
sabe que “Jesus” no Nordeste é daqueles que não têm pai sabido. O personagem
quer ser alguém importante. No filme, Olímpico sonha em ser deputado.
Entretanto, o livro aponta que o personagem gosta mesmo é de ver sangue.
Olímpico almeja ser açougueiro. Ele pensa em ocupar essa função por representar
para ele uma espécie de salto e realização de uma pulsão, isto é, o desejo, o
espírito jagunço. O professor de Literatura Comparada da USP, José Wisnik,
coloca que o cangaceiro é o potencial virtual do personagem. Na obra
cinematográfica, o canivete representa o valentão. “Uma coisa que tinha vontade
de ser era toureiro. Uma vez fora ao cinema e estremecera da cabeça aos pés
quando vira a capa vermelha. Não tinha pena do touro. Gostava era de ver
sangue.” (p. 46 – A Hora da Estrela)
Enquanto o nome de Macabéa vem dos antigos hebreus, Olímpico vem do grego.
Macabéa quer ser; Olímpico quer o poder.
As obras, tanto fílmica quanto
literária, apresentam muitos símbolos que apontam para a chegada das
multinacionais ao Brasil. José Wisnik aponta que associando o livro à marca
Coca-Cola, por exemplo, Clarice reforça a identidade da obra e atualiza o texto
no período pelo qual o país transitava. Dessa maneira o livro não correria o
risco de se tornar uma edição panfletária.
Os parafusos e os pregos, que
aparecem no livro e no filme, têm um formato fálico. Macabéa, com medo de que
houvesse uma ruptura na pouca comunicação que existia com Olímpico, ao passar
por uma loja de ferragens diz: “Eu gosto de parafuso e prego, e o senhor?” (p.
44 – A Hora da Estrela) Macabéa
também associa os objetos à figura metalúrgica de Olímpico. Quando a personagem
diz que gosta de pregos e parafusos, ela também quer dizer que gosta dele. “Mas
ela já o amava tanto que não sabia mais como se livrar dele, estava em
desespero de amor.” (p. 44 – A Hora da
Estrela)
É importante levantar que toda
vez que Macabéa come um cachorro quente a salsicha está escorregando para fora
do pão. Portanto, é a salsicha reforçando mais uma vez o símbolo fálico. Além
de o canivete apontar para um homem valente, há ainda uma representação da
virilidade de Olímpico. No filme, essa passagem é extremamente marcada quando
Olímpico corta as folhas e os espinhos de uma rosa com o canivete. A rosa
representa o órgão sexual feminino, enquanto o canivete o órgão sexual
masculino. Como segundo plano, há a imagem de uma ninfa. Ao mesmo tempo que é
um ato agressivo, Macabéa gosta. A partir de então, a personagem se arruma
muito mais e compra um batom. No filme, Macabéa já se sente mulher, começando a
mostrar expressão facial, esboçando sorrisos e aparecendo no mesmo nível de
enquadramento da personagem Glória.
Destaca-se ainda o rádio como
um mecanismo de comunicação de Macabéa com o mundo. A personagem absorve para
si pequenas doses das pílulas da Rádio Relógio como o máximo de cultura que
tivera a oportunidade de conhecer. Macabéa faz uso dessas pílulas para ter
alguma espécie de diálogo com o namorado Olímpico. No entanto, não há uma
troca, porque Olímpico não acrescenta nada à informação que recebe. Macabéa
pergunta a Olímpico o que é cultura. E ele, por sua vez, responde que cultura é
cultura, tornando, assim, o diálogo rápido e muitas vezes com frases nominais,
sem progressão, ação.
É
interessante notar também o local em que as personagens “Marias” trabalham: as
Lojas Americanas. Tal ideia reforça o conceito histórico da década de 70 da
vinda das grandes empresas ao Brasil. Percebe-se que é uma loja de
departamentos que, por meio do nome Lojas Americanas, sugere a condição de um
país de primeiro mundo no qual há progresso, desenvolvimento: Estados Unidos.
Existe ainda um sentido de esperança. Muitos nordestinos buscam um sonho, um
futuro melhor.
A
simbologia do manequim também é muito forte. O manequim é um objeto inanimado
que representa uma pessoa, não sendo. Macabéa identifica-se com esse manequim
porque ela também é um pré-ser, ou seja, ela é antes do humano – tem poucas
expressões faciais e gestos mecânicos.
As
obras cinematográfica e literária são sociais porque apontam para a
industrialização e desenvolvimento tecnicista. O gato come o rato do começo ao
fim, representando a luta pela sobrevivência e de classes. Há, logo, mais uma
vez a questão da promessa de emprego com carteira assinada. Existe uma demanda
do êxodo urbano, porque os nordestinos vêm trabalhar nas grandes cidades, como
é o caso de Macabéa e Olímpico.
O
desfecho do filme e do livro dá-se com a ida de Macabéa à cartomante. Se antes
Macabéa era o pré-ser, as revelações que a cartomante faz a ela serão o momento
epifânico em que Macabéa se percebe como um ser humano. Isso transparece
principalmente na sua fisionomia – a personagem se solta, sua expressão facial
é mais livre, Macabéa ri de gargalhar, como se fosse um soluço, isto é,
incontrolável. Por meio da promessa de um futuro promissor ao lado de um homem
loiro e estrangeiro que a ame, Macabéa se transporta para um cenário no qual
ela consegue quase palpar essa felicidade que jamais ousou imaginar. Nesse
momento, Macabéa caminha pelas ruas de forma suave e pela primeira vez ela anda
de cabeça erguida. Se antes ela só fitava os manequins do lado de fora das
vitrines, agora Macabéa não só entra na loja como compra um vestido. Veste ali
mesmo e sai pelas ruas. Solta os cabelos como um cavalo selvagem e, em seguida,
é atropelada por uma Mercedes-Benz. “A vida comendo a vida.” Atropelada como
choque trágico entre a nordestina e a cidade.
A Hora da Estrela é
simbolizada pela estrela que representa o logo da marca Mercedes-Benz. Mas
também pode ser intuída como o momento em que Macabéa se descobre como um ser
humano, retomando a vontade de ser uma estrela de cinema que aparece nas
revistas. Pode-se perceber, além disso, que Clarice Lispector arremata o livro
com a frase “Não esquecer que por enquanto é tempo de morangos”, ou seja,
deve-se aproveitar o agora: filosofia do Carpe
Diem.
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